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CARONA PARA O FIM DO MUNDO

“Eu deixei louça na pia e comida na geladeira”.

Órion Lalli - 1° “imagem” pós-exílio.

Desde que eu saí às pressas da minha casa no Brasil para pedir asilo na França, há uma frase martelando na minha cabeça, “Eu deixei louça na pia e comida na geladeira”, quase diariamente, “Eu deixei louça na pia e comida na geladeira”. Só agora, quase um ano desde que cheguei em terras francesas, que decidi trabalhar com a imagem dessa frase tão simbólica, sincera e que serve de ponto de partida para a criação dessa performance no Festival Actoral no MUCEM

 

O meu corpo é casa, é templo, lugar de afeto e acolhimento. A arquitetura residencial, principalmente em momentos de crises mundiais, marca historicamente a forma de pensar o lar e posso observar o quão engendrado o isolamento social, na pandemia da Covid-19, por exemplo, reformulou a ideia do que é “estar seguro”, do que é casa, acolhimento, e do que é afeto, para toda a sociedade.

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“Uma cama nos vê nascer e nos vê morrer. É a cena em constante mudança em que a raça humana joga, alternadamente, dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias terríveis. É um berço decorado com flores. Um trono de amor. Um sepulcro.”

 

Xavier de Maistre - Viagem ao redor do meu quarto

Em um primeiro momento eu preciso ampliar o contexto da palavra “exílio”, que hoje é oficialmente decretada pelo governo francês que me reconhece enquanto refugiado. É importante voltar no tempo para reformular esse contexto que me faz pensar que esse mesmo exílio que me atravessa hoje, sempre esteve sorrateiramente presente no meu corpo, que desde muito jovem vive um isolamento social e o exílio da sociedade cisgênera, seja na relação familiar, escolar, com conhecidos ou amigos, onde eu sempre experienciei a ideia de isolamento social.

 

Por isso é necessário o resgate das minhas memórias de infância, partindo das brincadeiras de casinha com meus irmãos e toda a relação com a construção de quem eu sou hoje.

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Como acessar simbolicamente a minha antiga casa? Qual seria hoje, estando do outro lado do oceano, a minha versão dessa minha casa imaginada, surrealista? Como usar da minha ideia ruidosa da estética brasileira e sua profusão de formas para construir esse corpo/casa?

I - Colecionador

 

Alinhado com a imagem da frase “Eu deixei louça na pia e comida na geladeira”, e colocando em prática o meu repertório de reapropriação de objetos, decido fazer uma lista com algumas das minhas principais lembranças e materializá-las através de diferentes objetos cotidianos que estejam ligados alegoricamente com alguma dessas minhas memórias.

 

Os objetos são colocados individualmente em sacos plásticos com fechamento a vácuo, criando diferentes percepções metafóricas. Uma forma de tocar e reviver a minha casa, meu afeto, revisitando a caixinha de recordações para seguir vivo, paralelamente à loucura colecionista desses fragmentos de memórias de um possível “Viajante Colecionador de Memórias”, que plastifica cuidadosamente suas lembranças, armazena tudo o que lhe é simbólico para durar o maior tempo possível protegendo-as do ambiente externo, construindo a sua coleção particular de memórias setorizadas, catalogadas, preservando seu cheiro, suas imperfeições e seu conteúdo afetivo, criando um corpo que caminha com suas memórias a mostra, um corpo afirmativo que transporta a sua trajetória por onde transita, ressignificando a ideia dessa “casa que se movimenta”, de uma casa ambulante em uma espécie de universo fantástico, onde todo o mundo cabe nesse corpo/casa.

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II - O Voo. A Liberdade.

Meu avô uma vez me disse que os aviões são como grandes pássaros de ferro, e quando olho para o céu e vejo esses pássaros, logo me vem à cabeça a palavra liberdade. Será que sou realmente livre dentro desse exílio que me cerca desde as minhas primeiras lembranças de menino?

 

Quando criança, meu pai construiu um grande avião de papelão onde poderíamos, dentro dele, brincar de pilotar. Eu me lembro que nos divertíamos muito, tinha briga e contávamos o tempo para saber de quem era a vez de pilotar aquela máquina.

Nessa nova performance, eu decido construir o avião de papelão, com as mesmas cores, contudo dessa vez com dois lugares para que eu possa oferecer uma carona aos transeuntes do museu ofertando uma pequena “brincadeira de criança”, criando relação com o espectador/transeunte na corda bamba do que é real e do que é ficcional.

 

Eu também empresto o meu corpo para dar vida a esse “Viajante Colecionador de Memórias”: ele será o piloto desse avião, é o piloto dessa possibilidade de liberdade recheado com as suas memórias mais antigas, materializadas e expostas nos sacos de plástico embaladas a vácuo.

III - Memórias

“Parabéns, você acaba de adquirir uma das minhas memórias.”

Fiz um pequeno dossiê com fotos antigas, pequenos textos e todas as memórias cartografadas e materializadas nesses objetos embalados a vácuo. Vinte e sete anos de memórias acumuladas!

*Aos espectadores/participantes da performance realizada no Mucem e que estão com minhas memórias:

Peço que você cuide bem dessa minha memória e que ela te traga muitas outras. Coloque essa memória em um quadro, pendure na sala, na cozinha, no banheiro ou onde achar melhor, mas por favor não deixe que essa memória morra.

Memória I

Meu avô morreu de câncer e foi uma morte muito rápida, menos de 4 messes desde a descoberta da doença. Me lembro dos tubos de comida passando por dentro do seu nariz. Ainda no hospital, ele me disse: “Meu filho, eu queria comer pela boca! É bom comer pela boca”. Meu avô não tinha dentes e antes de adoecer, sua refeição era: macarrão com atum e cerveja. Todos os dias o mesmo cardápio. Quando a minha irmã número 4  - Ana Júlia – nasceu, lembro do meu avô dando maça na boca dela e dizendo “Olha o aviãozinho!”. Ele saiu do hospital e entre todas as seringas de medicações minha mãe lhe dava comida pelos tubos no nariz e um dia, durante uma dessas refeições nasais, ele disse “Olha o aviãozinho!”. Minha mãe injetando a comida liquida pelo tubo e tentando cobrir as lágrimas para que ele não a visse chorar. Hoje o que eu mais como aqui na França é macarrão com atum!

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Memória II

Preciso ir ao dentista colocar aparelho outra vez! Eu sempre tive problemas com meus dentes porque eles eram tão tortos e o canino era super pontiagudo, tanto que pedi ao meu dentista para lixar a parte de baixo deles. Quando tinha cerca de 4 anos, meu pai me pegou sentadinho no sofá com a perninha aberta comendo um tubo de pasta de dente com sabor de frutas “Pelo menos você cagou cheiroso! Talvez por isso, a pasta de dente seja indicada para ser mantida fora do alcance de criança.” Disse meu pai.

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Memória III

Uma memória póstuma vale? Tenho oito irmãos, comigo nove, além de ser o mais velho de todos, só que não era para ser eu o irmão mais velho. Nivea (uma das muitas namoradas do meu pai) engravidou pouco antes da minha mãe ficar grávida de mim. Era uma menina que se chamaria Isabel. Meu pai ainda cultua o seu espírito. Uma amiga me disse um dia que se uma alma morre antes de chegar à terra, ela irá para o próximo corpo nascido naquela família. Talvez eu seja a Isabel.

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Memória IV

No primeiro dia de aula da pré-escola, não consegui sair do carro porque minhas pernas não conseguiam se mexer, meu corpo estava mole, depois eu comecei a não enxergar nada que a professora desenhava na lousa. Meu pai me levou ao oftalmologista. "Leia esta linha!" disse o médico. E eu errei tudo o que estava escrito, meu pai, em desespero, pensou que eu ia ficar cego. Depois que o doutor disse ao meu pai que era só psicológico e possivelmente relacionado à ansiedade escolar, ele sugeriu que eu colocasse um óculos placebo. Eu preciso de óculos hoje, meu pai me disse que é um castigo pelo susto que fiz ele tomar quando eu era criança, mas acho que é o medo de ver a vida como eles queriam que eu visse.

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Memória V

A primeira vez que tomei essa medicação no Brasil, liguei para minha tia Marlene e disse “Tia, estou vivendo com HIV e vou iniciar o tratamento agora.”, peguei um copo d'água e tomei os remédios com ela me assistindo por vídeo. Um dia antes ela tinha me ligado e me perguntado se eu estava trabalhando com prostituição, mas achei melhor falar a verdade, pois já sou uma prostituta artística. Minha tia Marlene não fala comigo há dois anos, devido a história do refúgio politico "Você sujou o nome da família e seu avô está se revirando no túmulo." Essa foi a última vez que nos falamos.

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Memória VI

O meu medo de cavalo vem muito antes de conhecer um pessoalmente, quando pequeno, sempre vi o quadro que meu pai pintou de um cavalo alado para o meu avô e depois, quando crescido, ouvi falar de uma história que aconteceu em Garça, perto de Marília. Meu pai e Telma (uma de suas muitas namoradas) estavam andando a cavalo quando de repente começaram a correr em disparada “Parecia uma Olimpíada!” disse meu pai, depois de algum tempo galopando em alta velocidade o cavalo de Telma colidiu com um coqueiro e estrangulou sua perna e depois passou por cima do seu corpo, isso fez com que ela passasse muito tempo no hospital enfaixada da cabeça aos pés. Muitos anos se passaram e eu namorei um cowboy e aí andei pela primeira vez a cavalo em uma bela cena romântica de O segredo de Brokeback Mountain.

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Memória VII

Eu tive apendicite no ensino médio, tive dores terríveis por uma semana, logo antes do ano novo. Minha madrasta me fez andar por todo o supermercado dizendo ser gazes, que deveria me exercitar e que logo passaria. Passei o réveillon na casa da minha tia médica, e antes de sair do carro, meu pai me disse “Não diga a tia que você está com dor que vai estragar o réveillon de todo mundo." Naquela noite, não comi nada porque a dor era insuportável. No primeiro dia do ano eu fui as pressas para o hospital e meu pai teve que depilar todo o meu corpo, ele usou três lâminas porque eu era e ainda sou muito peludo. Lembro-me de ficar em um grande banheiro de metal cheio de enfermeiras e pessoas doentes passando enquanto meu pai depilava o meu cu, as enfermeiras diziam “Não precisa se envergonhar, eu tenho um filho da sua idade.” Todas as enfermeiras tinham um filho da minha idade impressionante.

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Memória VIII

Sempre tive um certo fetiche por Cristo pendurado na cruz. Quando pequeno ia para igreja com meu avô aos domingos e me lembro de ficar olhando para Cristo ali pendurado no altar, quase sem roupa e com feridas nos joelhos como se tivesse acabado de sair de uma grande orgia, ficado de quatro dando o cu por muito tempo até se esfolar todo. Pouco antes de vir  para França, fiquei na casa de uma amiga por uma semana, escondido em uma cidade longe da minha, até conseguir um apartamento sob vigilância da ONU e das outras organizações que me ajudaram a chegar aqui e pedir asilo. Essa minha amiga me deu esse terço e disse “Esse terço é muito antigo e está na minha família há muito tempo, ele é para você, é seu agora e não transforme ele em arte.” Desculpe amiga, não resisti.

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Memória IX

Eu sempre via na mesa do escritório do meu pai muitos "Post-its" coloridos que minha madrasta não deixava ninguém usar, pois dizia ser muito caro e não era brinquedo para criança. Então nos contentávamos a jogar online aos domingo no único computador conectado à internet da casa na época, que só existia porque era a ferramenta de trabalho do meu pai. Durante o processo caótico de sair do Brasil e vir para a França, comecei a escrever algumas listas com ajuda do advogado (eu mesmo não conseguia pensar em tanta coisa sozinho) e uma delas foi gravada no meu celular. Hoje posso usar esses "Post-its" à vontade.

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Memória X

Fiz psicóloga por sete anos, dos meus seis até os treze, poque eu era uma criança “sexualmente aflorada” uma expressão criada pelos meus pais para dizer que eu era muito gay. Durante as sessões eu era forçado a brincar com “brinquedos de menino” e com uma família de bonecos feito de pano. Para provocar a Vanda, a psicóloga maldita, eu trocava as roupas de toda a família - papai de vestido, mamãe com o macacão que era do vovô e sempre colocava os bonecos do mesmo sexo para dormir juntinhos. Com os brinquedos de guerra eu fazia grandes orgias e tive grandes orgasmos colocando todos os homens para chupar o pau dos amiguinhos. É realmente, eu era muito aflorado sexualmente.

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Memória XI

Preciso parar de fumar! Comecei a fumar com as bitucas de cigarro que meu avô deixava pela casa. Eu e meus dois primos maternos adorávamos roubar as pontas de cigarro do meu avô, assim como os pacotes de tabaco ainda não finalizados que ele deixava dentro de um saco plástico pendurado na janela da cozinha. Fazíamos um esconderijo por entre os tijolos do quintal, forrávamos o chão e o teto dessa casa improvisada com papelão e ficávamos batendo punheta e fumando todas as bitucas do meu avô e as vezes enrolando o pozinho do tabaco em folha sulfite, que meu próprio avô nos ensinou a fazer. Eu preciso parar de fumar.

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Memória XII

Assim que cheguei aqui na França, troquei meu antigo tratamento por esse que me deixa extremamente cansado e bem depressivo. Quando pequeno, meu pai não dava vacina nos filhos porque acreditava que o corpo cuidaria de tudo e que a vacina era antinatural. Eu amo vacina, amo todos os medicamentos, até porque são eles que me fazem estar vivo hoje. É graças aos medicamentos que posso compartilhar essas histórias e seguir vivendo, inclusive esse remédio vai me acompanhar até o final de 2022 e depois mudarei meu esquema medicamentoso, duas injeções a cada dois messes e adeus pílulas diárias. Muita tecnologia.

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Memória XIII

Minha mãe ficou grávida muito jovem, na época ela trabalhava no shopping das duas da tarde até a meia-noite, e tentava me dar o  máximo de leite que podia até quando não dava mais para aguentar a fome do bebê, quando chegava em casa de noite, ela jogava uma beterraba, cenoura e um pedaço de carne na panela de pressão depois batia tudo no liquidificador e como ela mesmo diz: "Você comia tudo como se não houve amanha!”.

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Memória XIV

Nasci com cabelo nas costas. Eu tinha uns oito ou nove meses de vida quando comecei a coçar a cabeça quase arrancando os cabelos, eu não parava de coçar a cabeça foi então que meus pais notaram que eu estava cheio de piolho e tiveram que retirar um a um. Meu pai me segurou no colo enquanto minha mãe, com um bom pente para piolhos, removia os bichinhos e os jogava na pia do banheiro. Nunca mais tive piolho depois dessa época. “Filho, você era tão peludo que parecia um monstrinho urso, um monte de cabelo, muito peludo mesmo, pensei que ficaria com pelos nas costas para sempre, mas depois de algumas semanas tudo caiu. Deve ser por isso que eu tinha azia quando você estava na minha barriga, era só cabelo que essa praga tinha”. Disse minha mãe rindo muito.

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Memória XV

Um dia antes da Páscoa, meus irmãos e eu fazíamos um grande caminho de pedacinhos de cenoura desde a entrada da casa até do ladinho da nossa cama para que o coelhinho da páscoa trouxesse os maravilhosos ovos de chocolate. Nesse ano em especial, eu e o Heres – irmão número 1 – ficamos acordados, pois queríamos capturar o coelho e fazê-lo trabalhar para nós o ano inteiro, fabricando ovos de chocolate, nessa noite vimos que quem trazia os ovos era meu pai e ainda picotava as cenouras do chão para pensarmos que o coelho que tinha comido, o mais frustrante, foi que nesse ano não ganhamos ovos de páscoa e sim uma caixinha pequena com chocolates.

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Memória XVI

Sempre fui muito hipocondríaco, não sei se era porque minha mãe adorava remédios ou porque meu pai nos proibia de usa-los durante toda nossa infância. O curioso é que quando pequeno eu tomava secretamente remédio para dor de cabeça mesmo sem dor alguma, porque era viciado no sabor amargo, escondia embaixo do meu travesseiro com muitas outras coisas que eu roubava escondido para comer durante a noite na cama. Bem, agora eu tenho que tomar vários comprimidos por dia para o resto da minha vida! 

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Memória XVII

Sempre amei o circo, ficava fascinado por palhaços, o globo da morte e os acrobatas com as calças coladas. Fui ao circo pela primeira vez e me lembro de um número em que o palhaço saia todo esfolado de uma caixa de madeira, como se um leão gigante o arranhasse todo, só que no final, saia um pequeno gatinho. Já tive  aniversários com tema de circo e até ganhei um circo de brinquedo gigantesco. Anos se passaram e eu me tornei artista, mas hoje temo esse estado que o palhaço traz ao meu corpo.  Não sei se consigo ser um bom palhaço, mas tento lembrar o menino Órion de 5 anos, da sua vontade de ser um palhaço. Espero, um dia, conseguir esse desejo de volta.

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Memória XVIII

Como eu tenho muitos irmãos, tudo em casa era organizado por cor. Eu ficava com a cor azul, sempre! Eu nunca gostei dessa cor, mas a minha escova de dentes, minhas  cuecas, muitos brinquedos eram sempre eram azuis. O meu irmão ficava com o verde. O meu pai disse que na primeira vez que fui à praia, sai correndo do carro em direção ao mar e fiquei ali com os braços bem abertos, literalmente tentando abraçar o mar com a minha sunga azul e todo aquele azul do céu e do mar.

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Memória XIX

Na casa da minha avó tinha muitos pratos na parede emoldurando a porta da sala de jantar e eu sempre achei muito estranho os pratos ficarem expostos na parede daquela forma, para mim os pratos eram só para comer e não decoração. Ela me contou que aqueles pratos eram muito valiosos, por isso que não podíamos comer neles e que ganhou quase todos da sua mãe. É um daqueles tesouros cinematográficos achados no fundo do mar em um naufrágio em Paraty. Hoje eu tenho vários pratos pendurados na minha cozinha aqui na França, mas nenhum deles saiu do fundo do mar em um baú de tesouros. Minha avó está viva, mas não se lembra mais de nenhuma de suas memórias e muito menos quem eu sou.

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Memória XX

Essa é a Ana Júlia - a irmã número 4 - hoje ela é maníaca com limpeza, toma banho e imediatamente coloca a toalha para lavar e corre para pendura-las no varal. É bem razoável você não usar duas vezes a mesma toalha para se secar. Quando pequena, ela pegava todos os prendedores de roupa e esparramava pela casa numa divertida brincadeira de guardar coisas num balde de plástico. Aqui na França, pedi para a minha mãe recolher as roupas que eu deixei no varal. Que maluco uma coisinha tão pequena aguentar o peso de uma roupa molhada, não é?

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Memória XXI

Eu tive minha primeira boneca Barbie quando eu tinha 21 anos. Desde pequeno, só  ganhava carrinhos e brinquedos de “menino”. Como eu tinha muitas irmãs, usava as Barbies delas e conseguia matar um pouco a vontade de ter uma só minha. Eu cortava os seus cabelos, pintava todo o seu rosto com canetas coloridas, fazia roupinhas com retalhos de tecido que roubava da minha vó.  Quando o meu pai me viu brincando com as bonecas, ele tratou de me arrumar um Ken para que eu pudesse ser o homem na brincadeira e pegar o meu carrinho e levar as Barbies das minhas irmãs para passear. O que ele não sabia, é que eu sentia muito tesão no Ken, bem, essa já é outra memória.

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Memória XXII

Ah, o Ken, um dos primeiros contatos homoafetivos na minha vida e olha que engraçado, foram meus próprios pais que me deram essa imensa possibilidade afetiva que foi tão reprimida por eles mesmos (risos). Eu levava o Ken para o banheiro para tomar banho comigo, colocava sabonete em cima dele e ficava esfregando seu corpo no meu como se fosse uma esponja. Eu não aguentava mais ser o marido das Barbies das minhas irmãs, então peguei outro boneco escondido do meu irmão e fazia dupla com o Ken, passeando de carro até o shopping ou indo em piscinas na casa da Barbie como um casal gay de verdade.

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Memória XXIII

De todas as flores do mundo, a que eu mais odeio é a rosa. Acho mega cafona e impregnada de uma simbologia romântica super ultrapassada. Quer ser clássico? Prefira os Lírios Brancos que depois você pode fazer um bom chá com eles e ficar bem louca! Na pré-escola, me chamavam de florzinha, de delicada como uma flor. Hoje, revendo todas as fotos de infância, percebo que sempre fui sempre uma criança muito florzinha e com o passar dos anos, todo o meu jeito "só meu de ser" foi desaparecendo e se perdendo pelos caminhos heteronormativos. Isso também é cafona!

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Memória XXIV

Nesse pen drive coloquei todo o meu dossiê enviado para a OFPRA. O mesmo Pen drive que trouxe comigo quando abandonei minha casa no Brasil para pedir asilo político aqui na França. Saindo dessa mesma casa que ajudei a construir e que passei boa parte da minha infância. Antes, os documentos mais importantes estavam nele e o trouxe dentro da minha doleira com meu passaporte e algum dinheiro. Documentos oficiais, números de telefones e contatos importantes, tudo para que nada pudesse dar errado no momento em que eu cruzasse a fronteira na francesa. Hoje ele segue seu caminho como eu e minha despedida em quatro horas da casa que me viu crescer.

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Memória XXV

Meu tio me chamou de pavão quando criança em um amigo secreto no natal. Entendo o que ele quis dizer, pois o pavão gosta de se exibir com suas penas coloridas, mas acho que gosto mais da ideia de ser como um cavalo de brinquedo com sua grande crina e cores vibrantes. Quando criança, eu fazia teatro em casa com os meus primos e mandava todo mundo se fantasiar com roupas diferentes das que usávamos diariamente. Vou deixar o meu cabelo crescer como uma grande crina de cavalo antes de ficar careca e brincar um pouco mais de fazer teatro.

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Memória XXVI

Reza a lenda familiar que minha mãe tentou me abortar quatro vezes, eu nunca tive coragem de perguntar para ela se isso era verdade. Eu, com a idade que ela tinha quando ficou grávida, não pensaria duas vezes e faria um aborto. No Brasil, o aborto é ilegal. Minha mãe passou toda a minha gravidez com risco de morrer e deitada em uma cama por causa dos métodos nada seguros que utilizou para tentar me abortar. Mãe, estou aqui e prometo que sua gravidez valerá a pena, desculpe chegar assim no auge da sua adolescência e virar a tua vida do avesso.

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Memória XXVII

Minha irmã número 2 – Carol, sempre pensou mais devagar que eu e meu irmão número 1 – Heres. Um dia roubamos algumas moedas da bolsa da mamãe e a Carol tinha algumas no cofre de porquinho, decidimos falar para ela que a moeda de vinte e cinco centavos valia mais que as de cinquenta centavos, então trocamos quase todas as moedas com ela e compramos muito mais chicletes. Quando cheguei aqui na França, me restaram só algumas moedas em real, que não me serviram senão para contar essa história. Carol, quando você vier me visitar eu prometo te pagar um sorvete.

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Memória XXVIII

Não sei por que carreguei as chaves da minha casa no Brasil no bolso da minha mochila. Talvez com o pensamento de que algum dia eu volte para lá, ou por medo de não pertencer a lugar nenhum. A chave da casa que me viu brincando na varanda, a chave da porta que sempre emperrava e que só rodava duas vezes dentro da fechadura. A mesma chave que caiu no esgoto nas brincadeiras de carnaval. Vou sentir sua falta quando bêbado em casa eu chegava e não conseguia encontrar o buraco da sua fechadura.

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Memória XXIX

Durante a pandemia da Covid-19 eu fiquei com síndrome do pânico. Depois da censura, ser acusado de crime e ameaças de morte, veio a pandemia. Por conta das ameaças eu mudei de casa e por conta do isolamento social eu fiquei em depressão profunda. Eu tive que tomar muitos remédios para conseguir superar tudo isso. Não comia, não dormia, só sentava em frente a televisão e via a vida passar como uma planta na casa da minha avó. Eu pedi ajuda para minha madrasta e fiquei dois messes na casa dela dormindo na sala. Ela me  maltratou muito  quando criança, mas vendo a minha situação me pediu desculpas. Sentia muita raiva dela, mas hoje acho que estamos melhorando.

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Memória XXX

O HIV foi um presente que a vida me deu e eu sempre amei ganhar presentes. Como eu tenho oito irmãos, com o passar do tempo os presentes ficavam cada vez mais raros. Imagine o quanto de dinheiro para comprar brinquedo para tanta criança e no Brasil é tudo muito mais caro. Hoje eu vejo que, embora muitas coisas ruins tenham acontecido pelo simples fato de falar de HIV, posso pensar em um bom presente em um futuro não muito distante. Também tenho outros textos no meu blog sobre esse presente, vai lá dar uma lida!

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Memória XXXI

Injeção na bunda, sempre detestei desde criança, gritava de dor e de medo quando tinha que tomar qualquer injeção. Hoje, continuo gritando de dor e de medo nos check-ups de rotina, só que agora, na minha própria cabeça. Eu cheguei na França com um caso grave de gonorreia e clamídia, então comecei com o pé direito tomando boas agulhadas. Obs. Faça seu exame de IST.

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Memória XXXII

Eu troquei muitas fraldas de bebê na minha vida. Ajudei a cuidar dos meus irmãos mais novos, por isso eu amo o cheirinho de bebê. Uma vez ao trocar minha prima, tirei a fralda cheia de coco e passei talco no seu bumbum e quando eu menos esperava, ela solta um peido fedorento que fez o talco voar por toda a minha cara me deixando com muito nojo e depois desse dia eu sempre fico atendo com talco e bumbuns de neném, as duas coisas combinadas podem causar um dano tremendo, vai por mim! Dessa vez, não vou conseguir trocar o meu sobrinho tão cedo. Ele nasceu da minha irmã numero 8 - Salma, a mais nova de todos os irmãos e eu não tive tempo de conhecê-lo.

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Memória XXXIII

Todas as festas que podíamos reunir toda a família, meu pai organizava um teatro com os filhos. Em uma noite de natal encenamos o nascimento de Jesus, eu fui o José, a Carol a Maria e o Heres foi o burro. Maria sentou no burro e ele, muito burro, bateu com a boca no chão e quebrou o dente. Depois minha vó foi fazer uma xícara de chá para ele e até hoje toda vez que eu bebo chá, lembro do burro batendo com a boca no chão.

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Memória XXXIV

Eu ia escrever sobre muitas coisas relacionadas à pandemia, mas decidi que não quero falar mais sobre isso por enquanto. Comecei a olhar essas fotos da minha infância e percebi o quanto que eu sorria ou o como fazia belas caretas remexendo toda a boca e o corpo. Acho que a máscara diz muito mais do que apenas a relação com a pandemia, ela me fez lembrar que preciso sorrir muito mais e fazer mais caretas para essa vida careta.

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Remerciements

Photos: Sener Yilmaz Aslan

Traduction française: Camille Cousin

Tradiction anglaise: Sara Barrales Reyes

Typographie: Évora Lira

 

- Nino Djerbir

- Márcia Zanette

- Henri Lalli

- Sarita Gorog

- Nicolas Stolypine

- Nataliya Permitina

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