
Através das papilas gustativas da minha língua vou aos poucos sentindo o sabor da realidade.
É no meu estômago que a emoção trabalha, dilui e transmuta o repertório sensível/imagético em algo físico/palpável.
Essa série visual apresentada no festival vision d´exil reapropria o uso dos objetos/palavras, comumente presente em grande parte do meu trabalho. Cercado de imagens filosóficas que em um piscar de olhos ressignificam processos complexos do corpo refugiado no fazer cotidiano coletivo.
A azia que parte do bolo fecal ainda não digerido, volta para a minha boca e ela sabe que precisa ser expelida imediatamente.








Na busca concreta pelo diálogo com esse país que me recebe, encontro um livro “Histoire politique du barbelé” do filosofo francês Oliver Razac, que elucida diferentes fragmentos acerca da poesia do arame farpado.
No livro descubro que as cercas de arame farpado, criadas há quase 150 anos para uso na agricultura, ao redor de lavouras e pastagens, tomou outros lugares e começa a ser usada na cidade, acima dos muros das fábricas, para bloquear as ruas durante manifestações populares, nos quartéis, nas prisões e em algumas casas; ao longo das fronteiras ou mesmo cercando populações inteiras como durante a Guerra de 95 em Cuba , alimentando as trincheiras da Primeira Guerra Mundial e nos campos de concentração e exterminação nazistas.
Bem como a análise de suas diferentes utilizações, por vezes catastróficas, a bagagem histórica e simbólica do arame farpado presentifica o que é ser refugiado hoje e retrata a opressão baseada na brutalidade visível.
Sabemos que a percepção desse objeto na Europa não é a mesma do Brasil. Posso pensar na cartografia da ditadura versus democracia. Com isso, tentamos alinhavar alegoricamente os discursos de risco por meio desse fio condutor que é o arame farpado enquanto vivência política dentro dos possíveis espaços onde nos é permitido ocupar.
No Brasil, segundo o Art. 297 do Decreto Lei nº 2.848 de 1940, falsificar um documento público, ou alterar documento público verdadeiro é punível com reclusão de dois a seis anos e multa. Cancelar ou rasurar palavras, frases ou números de um documento, independente da inserção de novos dados ou modificação do seu conteúdo, caracteriza o crime de supressão de documento, na forma prevista pelo Art. 305 do Código Penal.
Vejo que o apagamento é algo recorrente nos corpos LGBTQIAP+, conheço os inúmeros métodos que utilizam para apagar minha história a cada dia que passa e expor esse apagamento de forma concreta nos meus documentos é apenas o registro físico dessa estranha estrutura política. Esse é o momento perfeito para me acusar de crime.
Seguindo o fio documental, que se torna recorrente em meus trabalhos e a frase ainda não deglutida. “Eu deixei louça na pia e comida na geladeira”, sigo a sequência poética e visual.
Quais as possibilidades de pertencimento nessa nova morada quando sua nacionalidade é lida como: NATIONALITÉ – Refugie Bresilien? Ou mesmo a simbologia de “marcar o gado” presente na capa do novo titre de Voyage, um tipo de passaporte especial que nos concedem após entregarmos ao estado francês todos os nossos documentos oficiais, a grafia em caixa alta - REFUGIE.
Seria esse um tipo de apagamento para ser decifrado ou a perpetuação de mais uma marca na pele?
Experimento nessa nova criação, colocar em prática o meu repertório de reapropriação de objetos e os materializo como uma forma de acessar simbolicamente os destroços deixados no Brasil.
O que é permitido na casa do colonizador?